22/8/2025
A Alvorada de uma Nova Era Pedagógica
Vivemos um momento singular na história da educação, onde a convergência entre inteligência artificial e pedagogia dialógica está a reconfigurar os alicerces da construção do conhecimento. Este fenómeno transcende a mera digitalização dos processos educativos - representa uma metamorfose paradigmática que desafia as conceções tradicionais sobre o que significa aprender, ensinar e conhecer no século XXI.
A emergência daquilo que Paulo Brazão (2024) caracteriza como "processos dialógicos de construção do conhecimento em contexto mediado por interfaces com inteligência artificial" não constitui apenas uma evolução tecnológica, mas uma transformação ontológica e epistemológica que reconfigura a própria natureza da experiência educativa. Estamos perante o surgimento de uma nova ecologia cognitiva onde as fronteiras entre o humano e o artificial se tornam cada vez mais porosas, criando espaços híbridos de aprendizagem que desafiam as dicotomias tradicionais.
A Tríade Humano-IA-Humano: Para Além do Antropocentrismo
A configuração triádica humano-IA-humano representa uma rutura radical com o paradigma educacional antropocêntrico que tem dominado o pensamento pedagógico ocidental. Nesta nova arquitetura relacional, a IA não funciona como mero instrumento ao serviço de objetivos pedagógicos predeterminados, nem como substituto da presença humana, mas como espaço dialógico genuíno onde o conhecimento emerge através de interações complexas e multidirecionais.
Esta perspetiva ressoa profundamente com o que Edgar Morin (2015) denomina "pensamento complexo" - uma abordagem que reconhece a multidimensionalidade dos fenómenos e rejeita as simplificações redutoras. No contexto educacional, isto significa abandonar a visão linear e hierárquica do conhecimento em favor de uma compreensão rizomática, onde as aprendizagens emergem de conexões múltiplas e não-hierárquicas.
Como demonstra a investigação recente conduzida na Austrália Ocidental, a conceptualização da IA como agente dialógico - fundamentada no conceito bakhtiniano de heteroglossia - permite que os estudantes se envolvam em processos de co-construção do conhecimento que transcendem as limitações dos modelos pedagógicos tradicionais. Os resultados preliminares indicam que os estudantes que interagem dialogicamente com sistemas de IA demonstram níveis elevados de pensamento crítico e criatividade, evidenciados pelo uso sistemático de questões de seguimento que revelam engajamento cognitivo profundo.
Desenvolvimentos Globais: Uma Cartografia da Inovação
América do Norte: Vanguarda Tecnológica e Democratização do Acesso
Os Estados Unidos lideram a integração da IA dialógica em contextos educacionais através de iniciativas de escala sem precedentes. A parceria entre a OpenAI e a American Federation of Teachers, materializada na National Academy for AI Instruction, representa um investimento de 10 milhões de dólares destinado a formar 400.000 educadores - aproximadamente um em cada dez professores americanos - nas competências necessárias para utilizar e moldar o desenvolvimento da IA educacional.
Esta iniciativa transcende a mera formação técnica. Como sublinha Sam Altman, CEO da OpenAI, o objetivo é criar um ecossistema onde os professores não apenas utilizem ferramentas de IA, mas participem ativamente no seu desenvolvimento e direcionamento pedagógico. A criação de "hubs" de inovação em IA educacional por todo o território americano até 2030 promete democratizar o acesso a estas tecnologias, combatendo as desigualdades digitais que têm caracterizado a adoção tecnológica em educação.
Europa: Equilibrando Inovação e Proteção de Direitos
A abordagem europeia distingue-se pela sua ênfase na dimensão ética e regulatória. O investimento de 2,6 mil milhões de euros em investigação e desenvolvimento de IA através do programa Horizonte Europa demonstra um compromisso substancial com a inovação, mas sempre enquadrado por considerações éticas rigorosas.
O Regulamento Europeu de Inteligência Artificial, primeiro quadro jurídico abrangente sobre IA a nível mundial, estabelece diretrizes específicas para sistemas educacionais, classificando como de "alto risco" aqueles que determinam acesso à educação ou percursos profissionais. Esta classificação implica requisitos rigorosos de transparência, supervisão humana e avaliação de impacto sobre direitos fundamentais.
A publicação das Orientações Éticas para Professores sobre o Uso de Inteligência Artificial pela Comissão Europeia representa um esforço pioneiro de traduzir princípios éticos abstratos em práticas pedagógicas concretas. Estas orientações não se limitam a estabelecer proibições, mas oferecem caminhos construtivos para integrar a IA de forma que amplifique as capacidades humanas sem as substituir.
Lusofonia: Navegando Entre Oportunidades e Desafios
No espaço lusófono, observamos dinâmicas particularmente interessantes. Portugal, através da estratégia "IA Portugal 2030", posiciona-se como laboratório de inovação pedagógica, com ênfase particular na inclusão, educação e qualificação. A Universidade da Madeira, através do trabalho pioneiro de Paulo Brazão e colaboradores, tem desenvolvido investigação de ponta sobre processos dialógicos mediados por IA, criando ferramentas como a plataforma ELABORA que permite registar e analisar as interações estudante-IA de forma sistemática.
No Brasil, a Fundação Lemann tem liderado reflexões críticas sobre a implementação da IA educacional, alertando para o risco de aumentar a velocidade e volume de conteúdos sem garantir qualidade pedagógica. Como observa Guilherme Cintra, Diretor de Inovação da Fundação, "aumentamos a velocidade e o volume de conteúdos, mas não garantimos a qualidade. Ao invés de poupar o tempo dos educadores, isso pode gerar mais sobrecarga."
A Evolução do Questionamento Crítico: Evidências Empíricas
A investigação de Brazão e Tinoca (2024) sobre a evolução do questionamento crítico em processos dialógicos com IA revela padrões fascinantes. Utilizando uma estrutura de cinco níveis de questionamento - desde Perguntas Gerais e Definidoras até Perguntas de Engajamento Crítico - os investigadores documentaram como a interação com IA pode catalisar o desenvolvimento do pensamento crítico.
Os resultados indicam que os estudantes que interagem regularmente com sistemas de IA dialógica demonstram:
- Progressão hierárquica no questionamento: Evolução natural desde questões básicas de definição até questões complexas que desafiam pressupostos e exploram implicações éticas.
- Diversificação epistemológica: Capacidade aumentada de integrar perspetivas múltiplas e estabelecer conexões interdisciplinares.
- Metacognição amplificada: Maior consciência dos próprios processos cognitivos e capacidade de regular a aprendizagem autonomamente.
- Pensamento sistémico: Compreensão das interconexões complexas entre diferentes domínios do conhecimento.
Implicações para a Prática Docente: O Professor como Arquiteto de Ecologias Cognitivas
A emergência da IA dialógica não diminui a importância do professor - pelo contrário, amplifica e complexifica o seu papel. O docente evolui de transmissor de conhecimentos para o que podemos caracterizar como "arquiteto de ecologias cognitivas" - um profissional capaz de:
1. Desenhar Constelações de Possibilidades
Em vez de sequências lineares de conteúdos, o professor cria ambientes ricos em conexões potenciais, onde múltiplos percursos de exploração são possíveis e a serendipidade é valorizada como elemento fundamental da aprendizagem.
2. Facilitar Simbioses Produtivas
Identificar complementaridades entre capacidades humanas e artificiais, criando interfaces significativas que ampliem as capacidades cognitivas do sistema como um todo.
3. Cultivar a Metacognição Distribuída
Ajudar os estudantes a compreender não apenas os seus próprios processos cognitivos, mas como estes se integram em sistemas mais amplos que incluem outros humanos e sistemas de IA.
4. Guardar o Método em Contextos Rizomáticos
Como Brazão enfatiza, "todo percurso rizomático deve veicular discurso sobre o método de construção da ciência". O professor assegura que a liberdade exploratória não sacrifica o rigor metodológico.
Desafios e Considerações Críticas
A Questão da Agência e Autonomia
A integração da IA nos processos educativos levanta questões fundamentais sobre agência e autonomia. Como preservar e cultivar a capacidade de pensamento independente quando os estudantes têm acesso constante a sistemas que podem gerar respostas instantâneas e aparentemente autoritativas?
A resposta não está na restrição do acesso, mas no desenvolvimento do que podemos chamar "literacia crítica para a era da IA" - a capacidade de interrogar, contextualizar e avaliar criticamente as respostas geradas por sistemas de IA.
Equidade e Justiça Social
A implementação da IA educacional arrisca amplificar desigualdades existentes se não for acompanhada por políticas deliberadas de inclusão. A experiência de Nova Iorque, que inicialmente proibiu o uso de IA generativa nas suas 1800 escolas mas posteriormente reverteu a decisão desenvolvendo políticas inclusivas, oferece lições valiosas sobre a importância de abordagens nuanceadas e participativas.
Integridade Académica e Avaliação
A capacidade dos sistemas de IA generativa de produzir textos coerentes e bem estruturados desafia conceções tradicionais de autoria e originalidade. Em vez de uma abordagem punitiva focada na deteção de "batota", necessitamos repensar fundamentalmente o que significa demonstrar aprendizagem e compreensão na era da IA.
Horizontes Emergentes: Para uma Pedagogia Pós-Antropocêntrica
A Emergência de Identidades Híbridas
Donna Haraway (2021) argumenta que estamos a tornar-nos ciborgues - entidades que transcendem a dicotomia natural/artificial. No contexto educacional, isto significa reconhecer que a aprendizagem não ocorre "com" tecnologia, mas através de assemblagens híbridas onde humano e máquina se co-constituem mutuamente.
Epistemologias Distribuídas
O conhecimento deixa de ser concebido como propriedade individual para ser compreendido como fenómeno emergente de redes complexas. Isto tem implicações profundas para como avaliamos, certificamos e valorizamos a aprendizagem.
Ética da Cognição Híbrida
Necessitamos desenvolver novos quadros éticos que reconheçam a dignidade e o valor de múltiplas formas de inteligência, sem cair em antropomorfismos simplistas ou tecno-determinismos redutores.
Conclusão
A revolução da IA dialógica na educação não é um destino inevitável, mas um horizonte de possibilidades que requer navegação cuidadosa, reflexão crítica e ação deliberada. Como Edgar Morin (2020) nos recorda, "a reforma do pensamento é um problema antropológico e histórico fundamental" - uma reforma que a integração da IA na educação torna simultaneamente mais urgente e mais possível.
O caminho à frente não está em abraçar acriticamente a tecnologia nem em resistir nostalgicamente à mudança, mas em cultivar o que Paulo Freire chamaria uma "curiosidade epistemológica" - uma disposição para questionar, experimentar e aprender continuamente sobre as possibilidades e limitações desta nova ecologia cognitiva.
A evidência emergente sugere que quando a IA é integrada de forma reflexiva e dialógica, não diminui a humanidade da educação - amplifica-a, criando espaços para formas mais ricas e diversificadas de conhecer, ser e tornar-se. O desafio e a oportunidade que enfrentamos é assegurar que esta amplificação serve propósitos emancipatórios, promovendo não apenas a eficiência cognitiva, mas a florescência humana em toda a sua complexidade e diversidade.
Como educadores, investigadores e cidadãos, somos chamados a participar ativamente na co-criação deste futuro educacional - não como espectadores passivos de uma revolução tecnológica, mas como arquitetos conscientes de uma nova ecologia do conhecimento que honre o melhor das nossas tradições humanistas enquanto abraça as possibilidades transformadoras do nosso momento histórico.
Referências
Biesta, G. (2022). World-centered education: A view for the present. Routledge.
Bogdan, R. C., & Biklen, S. (2017). Investigação qualitativa em educação. Porto Editora.
Brazão, P. (2024). Projeto ELABORA: Processos dialógicos de construção do conhecimento em contexto mediado por interfaces com inteligência artificial. Universidade da Madeira.
Brazão, P., & Tinoca, L. (2024). A evolução do questionamento crítico nos processos dialógicos com IA: Uma pesquisa em contexto universitário. SciELO Preprints. https://doi.org/10.1590/SciELOPreprints.9566
Haraway, D. J. (2021). Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. Autêntica.
Morin, E. (2015). Introdução ao pensamento complexo (5ª ed.). Sulina.
Morin, E. (2020). A cabeça bem-feita: Repensar a reforma, reformar o pensamento (24ª ed.). Bertrand Brasil.
Wu, R., & Yu, Z. (2024). Do AI chatbots improve students learning outcomes? Evidence from a meta-analysis. British Journal of Educational Technology, 55(1), 10-33.
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